segunda-feira, 4 de julho de 2016

filarmónicas

Comparar as filarmónicas e suas actividades de ontem (30 ou 40 anos atrás) com as de hoje é o mesmo que comparar o incomparável.

Filarmónica inicial do Soutocico (1946) 

São tantas as diferenças que para as enumerar é preciso fazer um grande esforço de memória.
Em 1950 ingressei na filarmónica da minha aldeia, Soutocico.
Tinha apenas nove anos de idade.
Dos dezoito alunos que entrámos na mesma altura só três chegámos ao fim. Eu, Toninho Zarunza, e Afonso chomeco. Eu fui tocar clarinete, o Zarunza Saxofone-alto e o Afonso trompete.
Era professor e maestro o Sr. Bastos, 1º sargento músico. Homem pequeno mas com grande dinamismo e muito exigente. Só nos passava de lição depois de bem sabida. Talvez por isso só três dos dezoito vingassem, ou então, como não havia instrumentos nem dinheiro para os comprar a selecção era mais rigorosa. Usava óculos muito graduados. As lentes pareciam fundos de garrafas, tal não era a espessura.
Como não havia instrumentos disponíveis, andei muito tempo a servir-me do clarinete que estava distribuído ao Manuel Caganito. O mesmo aconteceu ao Zarunza que se serviu com o saxofone do Manuel Miguel mas por pouco tempo porque este, saiu entretanto.
Quando ficou livre um clarinete foi-me entregue, só que ninguém conseguia tocar nele. Vazava como uma cesta rota. Quase todas as chaves precisavam de elástico para reforçar as molas pasmadas e algumas já partidas. Como se isto não bastasse, a boquilha tinha sido raspada e ficou estragada. Lá tinha de ser eu a vítima. Não sei como resisti a tanta anomalia. Naquela altura o pior instrumento era para o músico mais novo. Erro tremendo que hoje não se comete. Logo aqui encontramos uma grande diferença de comportamentos. Hoje, entrega-se um instrumento bom a qualquer aluno que, só assim poderá desenvolver-se rapidamente.
Actuação no Clube do Soutocico
Antigamente faziam-se entre 35 a 40 festas por ano. Festas onde se começava a tocar ao nascer do sol até ao pôr do sol. De manhã até ao meio dia fazia-se o peditório com os festeiros. Faziam-se quilómetros e quilómetros a andar, mas, na maioria dos casos já nem precisávamos de almoçar com tanta comida e bebida oferecida durante o peditório. Do meio dia até à uma hora era juntar os círios (andores) da uma às três horas e meia era tocar e cantar à missa seguida da procissão. Às cinco horas da tarde, concerto até à noite, com um ou dois intervalos conforme fosse de verão ou inverno. Almoço? Boa pergunta. Por vezes um pedacinho antes da missa começar ou ao sermão que naquele tempo demoravam cerca de meia hora, mas pelos motivos que atrás referi na maioria dos casos nem era preciso.
Actuação em Olivença, Espanha
Chato era quando o padre pregador abreviava o sermão e chegávamos tarde porque além de ouvirmos um raspanete do contramestre e até dos mais velhos, ainda éramos multados.
Hoje, fazem-se 8 ou 9 festas por ano. Começam a tocar por volta das onze horas ou meio dia quando não é só da parte da tarde. Não se fazem peditórios e juntar os sírios só junto do recinto das festas. À hora das missa vão almoçar descansadamente geralmente no restaurante da festa pago pela filarmónica, e depois fazem a procissão. À tarde, tocam uma hora de concerto, fazem a entrega da bandeira e regressam a casa com o serviço completo.
Os transportes é outra grande diferença.
Antigamente: Até a uma distância de trinta ou quarenta quilómetros as deslocações eram feitas de bicicleta, havendo ainda alguns que não tinham bicicleta e deslocavam-se a pé. Além destas distâncias as deslocações faziam-se de autocarro. Todas as despesas de instrumentos, maestro, fardamentos eram pagas com o dinheiro que fazíamos nas festas, daí termos de fazer muitas festas e mesmo assim, chegávamos ao fim do ano sempre empenhados. Não havia subsídios de ninguém.
 Hoje: As deslocações são feitas em carros particulares qualquer que seja a distância. Não precisam de fazer muitas festas porque tem havido subsídios e outras ajudas que vão chegando para saldar as despesas.
Filarmónica actual do Soutocico
Estas são algumas das diferenças para não falar na diferença abismal entre instrumentos de antigamente ou de agora. Nas muitas festas de dois dias que fazíamos antigamente e tínhamos de dormir em palheiros originando a que passássemos no dia seguinte a coçar por causa das praganas da palha, etc., etc., etc.
Mas, as diferenças mais acentuadas e notórias são os repertórios.
Antigamente os repertórios eram na base de rapsódias com música popular, lá havia uma ou outra  filarmónica mais arrojada que incluía nos seus repertórios obras como “Oregon de Jacob Haan”; “Overture 1812 de Tcaikovsky”; “Danúbio Azul de Johann Srauss”mas, mal interpretadas porque os instrumentos não davam para mais
Hoje, além dos repertórios serem mais sofisticados, são ainda mais bem interpretados,
Mas ainda bem que se melhorou bastante e mais haverá para melhorar, caso contrário acabariam todas as filarmónicas.
Este resumo é baseado nas mais de 50 filarmónicas que conheçi e ainda conheço, cuja maneira de actuar não fugia nem foge muito do que acabei de explanar.
Sempre tive e continuarei a ter muita admiração pelas filarmónicas. Portanto, aproveito para dar os Parabéns a todas as filarmónicas, suas direcções  e a quantos nelas militam, por terem sabido viver com tantas adversidades fazendo votos que continuem bem vivas e operacionais para continuarem a ser os grandes polos da nossa cultura.
Soutocico 3 de Setembro de 2016
José António


https://youtu.be/dYXl01bnw4E  Clicar aqui para abrir.




Futuro das Filarmónicas
As filarmónicas que não conseguirem fugir à crise ameaçadora e não lutarem com todas as armas que têm ao seu dispor pelos seus direitos, não têm grandes hipóteses de sobrevivência.
As festas reduziram drasticamente. Os subsídios quase não existem. As despesas inerentes à logística das filarmónicas, nomeadamente, instrumentos; fardamentos; transportes; professores; etc,, cada vez são mais expressivas. Se não houver fontes de receita para superar as despesas escusado será dizer que entram em insolvência.
Por aquilo que me é dado conhecer, já há filarmónicas a sofrer desta síndroma, algumas até com morte anunciada. Não terão estas culpas no cartório? Culpas por nada fazerem para inverter a sua situação? Não estarão elas a ajudar a cavar as suas próprias sepulturas por negligência?
As filarmónicas quando foram fundadas tinham como incumbência principal, abrilhantar as festas religiosas. Só podendo fazer outros serviços quando autorizadas pela Igreja, salvo ameaça de excomunhão. A sua missão compreendia: Arruadas; Peditórios com os festeiros logo ao nascer- do- -sol; Recolha dos Círios; Missa catada e tocada; Procissão; Concerto no arraial até ao pôr-do- sol ;e terminava o serviço com a entrega da bandeira. Nas Arruadas, todo o Povo saía à rua para aplaudir a Filarmónica e muitas pessoas abriam suas casas onde a mesa já estava posta para receber os músicos e festeiros para lancharem. Era de tal ordem que, quando chegava a hora do almoço, já não havia fome (por vezes nem sede) não obstante o desgaste físico de uma manhã a andar e a tocar. Esta tradição quase já não existe. A recolha dos Círios (Andores) e Procissão mantêm-se fieis à tradição. Missas tocadas e cantadas pelas filarmónicas caíram completamente em desuso. Foram substituídas pelos Coros, mas, no meu entender, para melhor.
Na parte do Arraial também houve uma grande transformação. Enquanto à 20 ou 30 anos atrás as filarmónicas faziam concertos de horas seguidas, com rapsódias de músicas populares que prendiam as pessoas no arraial e toda a gente percebia o que estava a ouvir. Hoje, tocam apenas uma hora de concerto com músicas sofisticadas de filmes que, na maioria dos casos, quem está no arraial, não só não ouve, como tal música não lhes diz nada.
Entenda-se que era um exagero. Exagero no serviço em si que hoje podia considerar-se uma violência. Exagero, no aspecto das filarmónicas só poderem tocar em actos religiosos. Mas, em abono da verdade, “nem tanto ao mar, nem tanto à terra” Foi-se do oito para o oitenta..
Para combater este vazio, apareceram as bandinhas que, dez ou doze músicos experimentados, fazem arruadas, fazem peditórios, fazem tudo: tocam marchas; tocam música popular; cantam; um dia inteiro, se preciso for, fazendo-se substituir pelas filarmónicas com 50 ou 60 elementos, não obstante estas tocarem música erudita e bem tocada. Claro que não concordo com tais bandinhas e lutei muito para as combater, mas, o facto é que elas estão a proliferar por tudo onde é sítio ocupando o lugar das filarmónicas nas festas que por tradição, eram da pertença delas.
As filarmónicas têm de repensar como voltar a conquistar o Povo, as comissões das festas, não para se escravizarem como antigamente, isso já pertence ao passado, mas, com repertórios mais atrativos, mais aliciantes, voltar a prender o público nos arraiais e não se deixarem substituir pelas Bandinhas.
As Filarmónicas devem continuar a fazer concertos sofisticados e eruditos, mas, em recintos próprios, onde o público possa ouvir com atenção e interesse porque valorizará, não só o espectáculo, como as filarmónicas em questão.
A Associação das Filarmónicas têm aqui uma missão hegemónica para colaborar em defesa das suas associadas, para precaução do futuro das mesmas, caso assim o entenda. Fica a minha sugestão e, vale o que vale.  
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